Discurso directo
Indecentemente surripiado do grupo "Ajudar-Timor" (mas aí já era forward de forward e portanto o surripianço não é grave), segue a versão integral do último discurso de Xanana Gusmão.
Como já antes aqui escrevi, este homem não manda dizer as coisas por terceiros, não insinua, não usa entrelinhas ou subentendidos, não sofre de verborreia e nem sequer é a tremenda seca politicamente correcta do costume. Para ler este discurso, é conveniente estar sentado e não ter pressa. Agradece-se que desliguem os telemóveis.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
ALOCUÇÃO DE SEXA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, KAY RALA XANANA GUSMÃO POR OCASIÃO DAS CERIMÓNIAS OFICIAIS PARA A COMEMORAÇÃO DO 28 DE NOVEMBRO
Dili, 28 de Novembro de 2002
Sua Excelência o Presidente Interino do Parlamento Nacional,
Sua Excelência o Primeiro Ministro,
Distintos Membros do Parlamento Nacional,
Distintos Membros do Governo,
Distinto Vice Representante Especial do Secretário Geral da ONU
Distintos Representantes das Missões Diplomáticas,
Senhoras e Senhores,
Esta é mais uma data para se celebrar a independência de Timor-Leste!
A independência não deveria ser celebrada, a independência deveria ser vivida nos seus benefícios. E é este o nosso problema maior, depois de mais de duas décadas de luta e depois de, mais recentemente e como ponto de referência, o 20 de Maio de 2002.
O que é que deveria significar a independência? Não será o conceito de “ou tudo ou nada”, mas temos a certeza deveria significar alguma coisa.
No “deveria significar alguma coisa”, podemos orgulhar-nos de termos uma bandeira, um hino e uma Constituição. Podemos afirmar também que temos um Presidente da República, que temos um Parlamento com 88 membros, muitos dos quais estão sempre a faltar e um Governo com muitos ministros e vice-ministros, porque se diz que há muito trabalho a fazer.
No “ou tudo ou nada”, podemos dizer que a independência significa, hoje em dia, um país com muitos problemas, que não são resolvidos com o devido cuidado.
28 de Novembro é uma data da FRETILIN! 20 de Maio é também dia da FRETILIN! A maioria no Parlamento é da FRETILIN! O Governo é essencialmente da FRETILIN! A independêncai serviu para se atender aos quadros da FRETILIN! A independência é para atender também os Antigos Combatentes da FRETILIN!
Celebra-se o 28 de Novembro de 2002, com a sensação de mágoa, por causa dos problemas de Uatu-Lari, com os problemas em Dili, com os problemas de Ualili e Baucau, com os problemas de Same e Ainaro, com os problemas de Ermera e Liquiçá, com os problemas de Suai e Maliana.
Infelizmente, nota-se que, criando problemas, pode-se levar algumas pessoas a Ministro, e que essas pessoas, depois de serem Ministros, só sabem aumentar os problemas. Há poucas semanas atrás, dei posse a mais um Vice-Ministro de Administração Interna, fazendo o apelo para que aquele Ministério comece a resolver com vigor os problemas que afectam a establidade e a segurança do país. O facto é que os problemas têm vindo a acumular-se.
Se a independência é só da FRETILIN, eu não tenho nada a comentar. Se a independência é para todos nós, todos os timorenses, eu aproveito esta oportunidade para exigir ao Governo a demissão do Ministro da Administração Interna, o Sr. Rogério Lobato, por incompetência e desleixo.
Conforme a Constituição, Timor-Leste ficou independente em 28 de Novembro de 1975! Há 27 anos que se é independente – vejam só! Presto a minha homenagem à FRETILIN!
Porém, para a Comunidade Internacional, ficámos independentes em 20 de Maio de 2002! Eu próprio fiquei sem saber como fazer um discurso em 28 de Novembro, com tantos problemas que o Governo tem nas suas mãos e, ainda por cima, com duas datas nas minhas mãos!
A justificação de que só há seis meses atrás se recuperou a soberania, não pode prolongar-se indefinidamente. A questão de que só pertence a alguns a obrigação ou a legitimidade de gerir Timor-Leste é reveladora não só de arrogância, como também de ausência de maturidade política e da total falta de consciência das dificuldades do país.
O que se nota é que as pessoas se deixam levar, muitas vezes, a assumir que os quadros do Partido é que merecem ser nomeados para este ou para aquele lugar! Perdeu-se a noção dos “interesses nacionais”, perdeu-se a noção dos “superiores interesses do povo e do país”, perdeu-se a noção da nova conjuntura do processo, que exige a capacidade para cumprir e dedicação para servir.
As pessoas ficam deslumbradas com o “poder”, as pessoas ficam obsecadas por, como quadros do Partido, serem ou terem que ser os que mandam. As pessoas só sabem exigir que os quadros do Partido, não importa se são bons técnicos ou não, não importa se fizeram alguma coisa à luta ou não fizeram nada, mas porque são quadros do Partido têm que ser eles os “grandes”.
As pessoas começam, erradamente, a medir o número de lugares pelo número dos quadros do Partido, para que todos se acomodem porque o partido é grande, e as pessoas ficam insatisfeitas porque nem todos sobem ou nem todos podem ir para cima.
Esta é a doença que arrastou muitos partidos e muitos países recém-independentes ao desmando, à ineficiência, à corrupção e à instabilidade política, onde os governantes vivem bem e o povo na miséria.
Hoje, o Povo vive as maiores dificuldades no seu dia-a-dia, mas o Partido vive o problema de não poder acomodar todos os seus quadros, com o perigo ainda de virmos a ter incompetentes administrando distritos e sub-distritos.
Disto tudo, se nota que muitas pessoas se servem dos partidos e não servem os seus partidos, e se servem os seus partidos não servem o país.
Hoje, celebra-se o 28 de Novembro e convido a todos a pensar nos deveres de cada um como cidadão e, sobretudo para alguns, nos deveres como governantes.
Muita gente ainda não sabe o quanto somos vulneráveis, depois da independência. Os Partidos políticos vivem a ilusão da independência, quando estamos, mais do que nunca, tão dependentes! Dependentes dos favores de outros, dependentes da grandeza e capacidade de outros, dependentes da nossa própria fraqueza ... de sermos um país pobre, pequeno e inexperiente.
Muita gente desconhece que levamos já como país sub-desenvolvido um estigma, como que um pecado original: a culpa de sermos pobres, pela qual temos que “render graças” aos que mais sabem, aos que mais podem, aos que decidem ... por nós, porque as regras de jogo já estavam estabelecidas e o 28 de Novembro de 1975 não significou absolutamente nada.
Aqui dentro, aqui em Timor-Leste, iniciámos os primeiros ensaios de aprendizagem política, tornando-nos mais vulneráveis ainda, enquanto nação, enquanto povo. E os que podem vão continuando a tentar ajudar-nos a criar a sensação de sobrevivência, porque a tentação que existe hoje, nos timorenses, é a satisfação das recompensas, haja ou não haja motivos para isso. Perdemos a noção da Nação, porque nos agarramos ao sentido dos interesses partidários.
Repito: muita gente desconhece o quanto somos vulneráveis, depois de 20 de Maio. E se não corrigirmos as atitudes, se não corrigirmos as irresponsabilidades, mais vulneráveis nos tornaremos, em cada ano que passa.
Muitos não têm a noção de que vivemos de esmolas, outros não têm a noção de que não podemos continuar a viver de esmolas. Alguns pregam o sentido de realismo, que eu diria de pactuação porque as leis do jogo não são nem podem ser nossas, são dos que podem para não dizer dos que mandam.
Nós os timorenses entretemo-nos, nas nossas politiquices de quem manda mais ou de quantos devem mandar, não nos preocupando em saber do nosso papel, como país independente, e das nossas obrigações, porque só temos obrigações, como país pobre e sub-desenvolvido.
É lindo celebrarmos a independência, duas vezes por ano. É triste, contudo, que o nosso povo tenha tantas lamentações, por cada dificuldade não resolvida.
Apelo ao Governo, aos Partidos sobretudo e ao Parlamento para considerarem seriamente os problemas que estão a acumular-se, ameaçando a estabilidade do País.
Obrigado.