Recebido, através do grupo Ajudar Timor, segue o texto integral do discurso de S.E. o Presidente Xanana Gusmão proferido no passado dia 20; pela sua especial relevância, parece-me merecer uma leitura atenta, cuidadosa e também ela integral.
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O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
MENSAGEM À NAÇÃO
ALUSIVA AO "20 DE AGOSTO"
DIA DAS FALINTIL-FDTL
UAIMORI, 20 DE AGOSTO DE 2003
Em primeiro lugar, como ex-guerrilheiro das FALINTIL, quero saudar a todos quantos, vivos ou mortos, fizeram parte da valorosa geração das Gloriosissimas Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste - FALINTIL.
Em segundo lugar e como Presidente da República, por razões de programa que incide particular atenção na estabilidade interna actual, lamento não poder estar em Uaimori, porque tenho que partir de Dili para estar com a população das localidades de Beco e Salele (Suai) e Lour e Lepo (Bobonaro) , na região fronteiriça do Sul do país e, no dia 22, reabrir os encontros de reconciliação na fronteira.
Como viemos todos a Uaimori para celebrar o dia das FALINTIL, existem algumas questões pertinentes que eu desejava abordar e que eu não deveria deixar para o próximo ano.
1. Após o golpe de 11 de Agosto de 1975, pela UDT, várias tentativas para o diálogo entre a UDT e a FRETILIN, por parte do governo colonial e por parte das tropas timorenses, integradas no espírito do MFA, que liderava o 25 de Abril em Portugal, falharam pura e simplesmente.
Como resposta à adesão ao golpe, por parte das companhias de Baucau e Lospalos, a FRETILIN iniciou também com o levantamento da Companhia de Aileu, em 17 de Agosto de 1975, depois da proclamação pelo CCF da Insurreição Geral Armada, em 15 de Agosto, nas encostas sobranceiras de Dili, em Talitú.
Estas foram as bases políticas para a criação das FALINTIL, em 20 de Agosto daquele ano, pela adesão das tropas timorenses do Quartel-General (colonial) e das companhias estacionadas em Dili.
As FALINTIL - FORÇAS ARMADAS DE LIBERTAÇÃO NACIONAL DE TIMOR LESTE nasceram sob a umbrela de um partido político, a FRETILIN, para combater outro partido político, a UDT.
Depois das infiltrações das tropas indonésias, ao longo da fronteira, a partir dos fins de Setembro e que se intensificaram a partir de Outubro com claro objectivo de controle territorial, pela contínua progressão no terreno e, mais ainda, depois de 7 de Dezembro daquele ano, as FALINTIL adquiriram a verdadeira dimensão do significado de 'Libertação Nacional', porque estava a combater uma tropa estrangeira, que violava a integridade do nosso solo.
Em 1977, a política incorrecta do 'fuzil ao serviço da ideologia' provocou o assassinato de vários comandantes superiores das FALINTIL, entre outros elementos, tidos como traidores da Pátria, mas que, na verdade, eram nacionalistas e, sobretudo,bons comandantes.
Como consequência e depois da grande derrota sofrida, em 1978 e 1979, as FALINTIL ficaram reduzidas a umas centenas de homens e armas, devido em parte ao aliciamento provocado por mesmo alguns membros do CCF, que negaram os princípios que tanto defendiam, nos primeiros três anos, nas Bases de Apoio.
A política de revisão do conceito de Unidade Nacional, em 1981, permitiu que se encetassem os primeiros passos de reconciliação nacional, entre os timorenses, o que impulsionou gradualmente a participação, espontânea e confiante, de todos os componentes da sociedade timorense, desde partidos políticos aos que, no início, defendiam a integração ou os que, posteriormente, estavam a servir os ocupantes.
2. Em 1984, devido à irresponsabilidade e à inépcia, demonstrada desde Agosto de 1983 pelo Estado-Maior das FALINTIL, colocado nas Regiões Centrais do País, e que provocavam constantes baixas dos guerrilheiros, houve a necessidade de se pôr côbro à situação de desânimo no seio das Forças e corrigir a situação de total inactividade operacional das Companhias, passando-se a entregar um maior dinamismo às mesmas, na tomada de iniciativas de actuação.
Perante isto, houve por parte do ainda então Estado-Maior das FALINTIL uma actuação impensada no intuito de persuadir as Forças a se rebelarem contra o Comando Superior da Luta. Felizmente, os guerrilheiros demonstraram grande maturidade e se negaram ao uso da violência para a solução de conflitos internos e opuseram-se à qualquer perspectiva de derramamento de sangue.
Esse espírito de maturidade permitiu que o conflito, inicialmente de carácter meramente militar e disciplinar mas que, depois, tomou uma natureza ideológica, revolucionária, que não aceitava a mudança da
ideologia de partido único para uma democracia pluralista, fosse resolvido sem necessidade de confronto armado.
Contudo, por continuarem aferrados às suas ideias, Mauk Moruk, que era o Vice-Chefe do Estado-Maior e 1º Comandante da Brigada, afastou-se e foi-se render, com armas e munições, Olo Gari, que era o 2º Comandante da Brigada, convidado a continuar nas fileiras das FALINTIL, recusou e se separou da Organização até que, tempos depois, doente, veio para as Vilas e Kilik, que anteriormente era o Chefe do Estado-Maior, perdesse a vida num dos combates que a guerrilha teve com o inimigo.
Refiro-me a este incidente, porque eu sei que, hoje, muitos que até nem conhecem o historial da resistência, querem ou continuam a levantar esta questão, como uma ferida aberta a exigir uma solução. Muitas testemunhas ainda estão vivas para depôr sobre a verdade dos factos.
3. Foi conseguido que, em 1986 também no exterior, a UDT e a FRETILIN aceitassem formar a Convergência Nacionalista, acto político necessário para corresponder com o estádio avançado da política de Unidade Nacional, no interior da Pátria.
Alcançados assim os objectivos de Reconciliação Nacional, decidiu-se, em 1987, que as FALINTIL se despartidarizassem para, a partir daí, serem o suporte fundamental para o fortalecimento da organização da resistência, no seu todo, podendo assim conduzir a Luta até à Vitória, em 30 de Agosto de 1999.
Esta foi, em resumo, a história e este foi também, em resumo, o papel fundamental, a missão histórica, das FALINTIL: Unir o Povo para Libertar o País.
4. Desde que se alcançou o objectivo que todo o Povo assumiu e que era de libertar a Pátria, depois de sermos um país independente e soberano, qual deveria ser o papel das Forças Armadas? Libertar ou Defender? Esta é a questão que se põe para se compreender que todo e qualquer processo social e político, não é um processo morto. Deve ser um processo dinâmico, um processo vivo, um processo que evolue.
Se as FALINTIL não evoluissem, durante a Resistência, a Reconciliação Nacional e a Unidade Nacional não teriam sido capazes de existir e teria sido dificílima a vitória que conseguimos.
Hoje e lamentavelmente, algumas opiniões ainda questionam a mudança das FALINTIL para FDTL. As FALINTIL, como Forças de Libertação, cumpriram a sua missão! Repito: depois de sermos admitidos na ONU, como um 191º país soberano e independente, as nossas Forças Armadas deveriam receber a missão de 'libertar' ou 'defender' o país?
5. Realmente, somos uma sociedade democrática, mas se a democracia nos obriga a seguir toda e qualquer opinião individual e/ou opiniões de um só grupo, a democracia se tornará num caos, onde não
somos capazes de nos entendermos e não vale a pena haver Estado, haver instituições, haver leis, haver normas para regular a participação dos cidadãos.
Já me fizeram esta pergunta, em vários sítios: qual é a democracia que concebemos em Timor-Leste? Pela Constituição, há dois mecanismos que asseguram a vivência democrática e que são: a democracia representativa, através dos órgãos de soberania do Estado, eleitos e que tomam decisões, de âmbito dos interesses nacionais e a democracia participatória, que dá aos cidadãos, à população, à sociedade, por um lado, expressar as suas opiniões e, por outro, participar activamente no processo de desenvolvimento das suas próprias comunidades.
Aqui, existe necessàriamente dois níveis de decisão: o nacional e o local. Aqui, existem também duas formas de expressar opiniões e vontades ou aspirações: uma, através dos seus representantes eleitos, e outra, individualmente, em comunidades.
Se não existe esta percepção dos mecanismos legais, existentes, de construção do Estado democrático, qualquer opinião é uma lei e isto não é democracia.
Eu costumo recorrer a um exemplo do nosso processo e que o povo não deve perder de vista, para perceber o espírito da democracia, que deve ser saudável e construtivo. Aquando foi dos debates finais da Assembleia Constituinte, alguns partidos votaram contra partes da Constituição; quando foi para aprovar a Constituição, todos os partidos, com assento na Assembleia Constituinte, como representantes legítimos deste Povo, assinaram o importante documento, que é hoje o garante das liberdades, dos direitos e dos deveres de cada cidadão.
Só os partidos políticos, que o povo confiou e elegeu, e que tenham assento no Órgão de Soberania, que é o Parlamento, podem dizer que têm legitimidade de falar em nome do Povo. Qualquer outro grupo de carácter politico, que queira aparecer 'em nome do Povo' deve, pelas normas constituicionais, passar pelas eleições.
Nalguns sucos, por que passei, aparecem elementos que se afirmam falar em nome de todo o Povo, 'Povo Maubere e, inclusive, Povo Bibere'. Aparecem a defender a Constituição de 1975, aparecem a defender que não se deve mudar o nome das FALINTIL e eu pergunto-lhes pela idade e o que fizeram nos 24 anos da Resistência.
Muitos que defendem a Constituição de 1975, eram menores de idade em 1975. E muitos que defendem a não mudança das FALINTIL nunca pegaram em armas.
Nos inícios de 1976, eu era comandante de pelotão até a 1ª Organização da Resistência, em Maio e eu passei para quadro político. Em Março de 1981, assumi o Comando das FALINTIL e estão aqui também presentes os valorosos comandantes que serviram as FALINTIL, na busca do objectivo de Libertação Nacional, conseguida em 30 de Agosto de 1999. Em Agosto de 2001, deixei as FALINTIL, com a mesma convicção quanto ao processo, como foi desde o seu início.)
Ora bem, já depois da libertação da Pátria, aparecem jovens que se arvoram serem os mais entendidos em questões do processo e em questões das próprias FALINTIL. E isto tudo está a causar preocupação por parte do povo e certa instabilidade, sobretudo, numas localidades.
Apelo a todos para que respeitemos o processo. E a questão é que os que iniciaram o processo (e nem eu faço parte desta lista) ainda estão vivos, com maior experiência, obviamente recheada da amargura dos erros e do sabor de sucessos.
Não sejamos subjectivos, porque a falta de objectividade conduz sempre à intolerância e à intransigência. E, como Presidente da República, eu não vou tolerar que isto continue, sobretudo se é para desestabilizar, de uma ou de outra forma, o processo.
6. Quando se fala de desestabilização, não devemos pensar apenas em certos conflitos provocados por um ou outro grupo insatisfeito. Nós sempre gostamos de apontar o dedo para a CPD-RDTL e
talvez mais porque alguns ex-hansips e ex-milícias também entraram na CPD-RDTL. Nós também gostávamos de apontar o dedo para o Colimau 2000, talvez porque os elementos do Colimau 2000, que eram activos na resistência clandestina e eram perseguidos pela polícia indonésia, hoje estão frustrados porque veem que alguns polícias que os perseguiam no tempo indonésio, voltaram a ser polícias e a portar-se como se fossem polícias indonésios e não polícias da nova Nação democrática, que é Timor-Leste.
Porque estamos no início da construção do Estado democrático e de direito, (começo ainda frágil, no sentido da nossa própria fraqueza e certa falta de maturidade), a desestabilização democrática pode ser resultado também de outros factores, que não a violência como a compreendemos nas estatísticas da polícia.
Ultimamente, o povo tem acompanhado as polémicas que os políticos produzem para vender ao povo, como se fosse o supermi dos quiosques sem conta, que abundam como sinal de desenvolvimento económico em todo o país.
Estamos a aprender a usar a democracia, estamos a aprender a compreender o verdadeiro sentido da democracia. O nosso povo está a tentar compreender a democracia, pela forma como os seus políticos, como os seus representantes, brandem a arma da democracia.
E o nosso povo assusta-se, porque os políticos falam de golpe. E o nosso povo tem receio que os nossos políticos queiram o golpe. Porque o nosso povo sofreu, no passado, em circunstâncias de golpe e contra-golpe. Não foram os políticos que morreram, foram elementos do povo, que acreditavam na sabedoria dos políticos, os que perderam a vida e sofreram nas prisões.
Será que se está a tentar intimidar o povo, pela lembrança da insensatez dos políticos de 75? Será que isto apareceu como a melhor forma de preparar mentalmente grupos ou facções, em defesa violenta de um ou outro partido?
Quem fará o golpe? Com que meios? Para que? - estas são as perguntas que aparecem na boca do povo.
7. Ultimamente também, houve um certo mal-estar, grandemente explorado pela sociedade, entre a PNTL e as FDTL. O golpe será com a PNTL ou será com as FDTL? O povo pergunta assim, porque os
políticos falam de golpe.
Já fiz saber que as FALINTIL nasceram de uma situação de guerra entre irmãos, isto é, uma guerra entre os próprios timorenses. Mas ninguém deve esquecer também que, depois, ao assumir com maior clareza a sua missão, as FALINTIL empenharam-se a unir o Povo, ficando fora da influência de qualquer partido político e, hoje e para o futuro, as FDTL saberão qual é a sua verdadeira missão num Estado democrático e de direito.
A PNTL foi criada, no processo de transição à independência, conseguida em 20 de Maio do ano passado, para ser uma nova polícia, diferente da polícia indonésia que o povo conhecia nos 24 anos
anteriores. Eu sei que existe uma total falta de ética e de profissionalismo na polícia timorense e tenho vindo a receber muitas queixas, por parte da população, de abusos de poder e de indisciplina,
nunca sancionados, de alguns e não poucos elementos da polícia, que dão a sensação de que eles é que detém o Estado nas suas mãos.
Quanto a isto, eu sei que a UNMISET, o Governo e a própria Polícia estão de acordo com a ideia de um Debate para modificar esta situação incontrolável e inaceitável, que retira toda a credibilidade à polícia e pode ser fonte de futuras e graves situações de instabilidade. Eu sou da opinião de que o público, em geral, deveria participar neste Forum, para que as Instituições do Estado conheçam bem as falhas e as corrijamos a tempo.
Com isto tudo, devo dizer que é, de todo, reprovável, a leviandade com que políticos e responsáveis neste processo de construção democrática, brincam a assustar o povo, ao invés de incutir confiança no povo quanto ao processo democrático que todos estão empenhados de defender.
8. Enquanto Presidente da República (e eu ainda tenho 4 anos de mandato), peço a todos os componentes da sociedade e sobretudo aos políticos para se refrearem em pronunciamentos imbecis e quero
afirmar também a todo o Povo que, como guardião da Constituição, não permitirei a quem quer que seja o pequeno devaneio político para fazer sofrer o Povo.
Estou-me a dirigir a todo o Povo para acreditar no processo democrático que já iniciámos e que não percam o tempo a pensar se vai haver ou não vai haver golpes. O povo já está farto de sofrer e não
permitirei que isso aconteça de novo.
Existem, pelo mundo fora, países já independentes dezenas de anos, e que hoje continuam a brincar a violentar e a fazer sofrer o povo. E isto porque não cuidaram bem do processo de independência, e
isto porque acreditavam que a independência é apenas ter uma bandeira, um Presidente corrupto, um Parlamento fantoche, um Governo ineficiente, uma Justiça incapaz. Nesses países, hoje há guerra, nesses países, acontecem golpes ou tentativas de golpe, para se tomar conta do poder.
A independência, nesses países, tem o significado de 'poder': quem tem poder, quem manda, quem pode. A independência, nesses países, não dá oportunidade para se pensar em 'quem serve'. A independência, nesses países, deu apenas a oportunidade aos políticos e aos governantes para manter o poder, custe o que custar, mesmo com contínuo sofrimento do povo.
O Poder, nesses países, obceca as pessoas, a ambição de manter o poder entra em contradição com a democracia e, assim, o poder começa a albergar a intolerância e, assim, o poder procura frenéticamente fortalecer-se pelo uso indevido dos seus serviços de inteligência que praticam o espreitar dos movimentos dos adversários políticos, e praticam a intimidação pela própria divulgação de rumores.
9. Hoje, alguns, como os irmãos da CPD-RDTL, questionam a soberania, colocando a ênfase na saída da UNMISET, do PKF, da UNPOL, etc., para sermos nós próprios, os timorenses, a pegar nisto ou naquilo. E isto é errado!
Todos deverìamos questionar a questão da soberania, do povo, mas por outro ângulo, pelo ângulo que dá o verdadeiro sentido à nossa independência. Soberania do Povo, na sua decisão em eleições dos seus representantes, e soberania do Povo na sua participação directa e permanente na construção do País a partir das suas comunidades.
Todos continuamos à espera de que o Governo e o Parlamento se pronunciem quanto à questão fundamental do 'Poder Local'. A democracia só será uma prática consciente do nosso povo, quando se garantir que o povo participe activamente na solução dos seus problemas locais.
Aí, se coloca a questão da soberania, como é entendida na Constituição. A soberania não significa termos apenas a Constituição, que nos proclama independentes de outros Estados. A soberania deve ser um acto de vivência democrática do nosso povo, para não iludirmos o povo a pensar que é soberano, apenas porque elegeu os seus representantes que falam por ele, mas muitas das vezes ou não falam ou pensam em si mesmos, em como não perderem a posição que ocupam, em como continuarem no poder.
É, por isso, que peço ao povo para se unir em volta do processo democrático, para alimentarem no seio das comunidades o espírito de crítica mas de tolerância, o espírito de criatividade e de participação.
Quando todo o povo estiver unido neste processo de construção do nosso Estado de direito, estaremos capazes de construir a Nação. E ninguém se preocupará quando algum imbecil voltar a assustar o povo com golpes.
Quando todo o povo estiver a gozar do seu direito de decidir activamente no processo de construção do País, a partir das suas próprias comunidades, eu acredito que os intelectuais, políticos e
governantes vão compreender efectivamente que este povo quer construir a paz, baseada na tolerância e justiça social, quer desenvolver o país, com bases na disciplina, no profissionalismo e no trabalho árduo e com bases na luta contra a corrupção e nepotismo.
Apelo ao todo o Povo para acreditar no futuro, acreditando, mais uma vez, em si próprio.